quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Poema Pial

Toda a gente que tem as mãos frias
Deve metê-las dentro da pia.

Pia número UM,
para quem mexe as orelhas em jejum.

Pia número DOIS,
Para quem bebe bifes de bois.

Pia número TRÊS,
Para quem espirra só meia vez.

Pia número QUATRO,
Para quem manda as ventas ao teatro.

Pia número CINCO,
Para quem come a chave do trinco.

Pia número SEIS,
Para quem se penteia com bolos-reis.

Pia número SETE,
Para quem canta até que o telhado se derrete.

Pia número OITO,
Para quem parte nozes quando é afoito.

Pia número NOVE,
Para quem se parece com uma couve.

Pia número DEZ,
Para quem cola selos nas unhas dos pés.

E, como as mãos já não estão frias,
Tampas nas pias!

Fernando Pessoa

4 comentários:

Carmo disse...

Fernando Pessoa gostava muito de crianças, de as ouvir e conversar com elas, também inventava histórias que contava aos sobrinhos e aos filhos dos amigos, foi para eles que escreveu o "Poema Pial" que é muito disparatado e divertido.
Gosto deste poema, é que se pode fazer poesia a brincar!

Mário disse...

Não conhecia este poema - mostra uma faceta que não é muito falado, em Pessoa.

Um dos meus preferidos, sobre crianças, é o "Poema do Menino Jesus", de Alberto Caeiro, aliás como todo o livro sobre o Guardador de Rebanhos.

A ironia associada à visão pueril do "Menino Jesus" é excepcional, dando uma boa tacada na hipocrisia e no faz-de-conta de certas visões da religião.

Carmo disse...

"Ele dorme sózinho na minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos
Vira uns em cima dos outros
E bate as palmas sózinho
Sorrindo para o meu sono
(...)
Esta é a história do Menino Jesus
Por que razão que se perceba
Não há-de ser verdadeira(...)"

Quando voltou para Portugal Fernando Pessoa foi viver com a mãe e a irmã, sempre teve uma grande relação afectiva com a família, adorava os sobrinhos, nos jantares enquanto os adultos conversavam ele brincava com as crianças.

Na sua infância brincava horas a fio com os seus amigos imaginários que o acompanharam a vida toda.

Mário disse...

Além destas estrofes quase provocatórias, mas de uma sensibilidade e humanidade extremas (quando leio a última, sinto um arrepio e comovo-me):

(...)Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
(...)
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe
Nada das coisas que criou .
«Se é que ele as criou, do que duvido.» -
«Ele diz, por exemplo, que seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada,
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
(...)
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.