sábado, 7 de fevereiro de 2009

A pensar

Desenho de Almada Negreiros

Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traz tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue verdadeiro, encarnado!
Eu ainda não fiz viagens
E a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar.
Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa.
Depois venho sentar-me a teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa.
Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exatamente para a nossa casa, como a mesa. Como a mesa. Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!

Poema de Almada Negreiros

5 comentários:

Teresa disse...

Este é daqueles que emociona ao mesmo tempo que nos deixa a pensar...
É muito, muito bonito. Não conhecia, Obrigada!

Mário disse...

Tenho vindo ao Blogue mas tido menos tempo para comentar, dado que estou em fase final de um Livro, e não quero descurar, nem este meu novo "filho", nem os outros cinco ("mai-los" netos, nora e genro!). E a namorada, claro está.

Mas este poema de Almada é forte. Em tons de encarnado e de vermelho (porque são duas cores, embora muita gente "chique" não entenda isso e proiba os filhos de dizer a segunda). De sangue. De dor e de alegria. De intensidade. De espasmos e de afectos. De Vida.

Fecho os olhos, páro por momentos de pensar, e só queria sentir a mão da minha Mãe nos meus cabelos. Exercício difícil. Desejo impossíve. Então, agorinha mesmo, vou ter com os meus três pequeninos à cama e aconchego-lhes os edredons, faço uma festa, digo "boa noite, Gordo, sonhos doces", e saio dos quartos com um nó na garganta e na alma, porque ficaria ao lado deles, abraçado, a noite inteira, porque o amor que se sente pelos filhos é, também, reparar em nós as feridas que temos abertas e os mimos que porventura não recebemos.

O tempo corre depressa demais, desde o dia em que me disseram que não podia fazer isto porque tinha de fazer aquilo - aí pelos 18 meses de idade. Foi aí que entendi a condição humana, e a crueldade que é, com tanto a fazer, vivermos em média um sexto da vida de um saco de plástico. Não é justo. Mas é a realidade.

Que a vida seja então encarnada, vermelha, carmim. Intensa e viva, passe o pleonasmo.

PS: E, claro, que o encarnado do meu Benfica perdure e seja o melhor entre os melhores!

Francisca Prieto disse...

Igualmente da "Invenção do Dia Claro", uma estrofe que adoro:

" Mãe, a oleografia está a entornar o amarelo do deserto por cima da minha vida"

Um dia em Maputo entrei num núcleo de arte local e vi este verso materializado - a tela era litealmente o amarelo do deserto a ser entornado por cima da minha vida.
Tive de a trazer.

Graças a Deus, pertenço ao grupo de pessoas que ainda tem uma mãe que nos passa a mão pela cabeça.

O meu irmão Zé, que deve andar pelos 47, ainda chega lá a casa e vai a correr aconchegar-se ao colo da nossa mãe, o mimalhão!!!

joaninha disse...

Como é belo o poema!

Como é bela a ideia de ter partilhado connosco o poema!

Como é belo e bom ter a mão da nossa mãe na nossa cabeça...

Fica tudo mais fácil, mais verdadeiro e mais claro!

...e como mãe gosto muito de passar a mão pela cabeça dos meus filhos e como diz a amiga Francisca Prieto, também eles gostam de colo ( e se eles são grandes e pesados)...

Cada vez que venho ao blog tenho sempre vontade de agradecer: pela qualidade, pelos trabalhos das crianças e das suas grandes pedagogas,...

BEM HAJAM! Sempre e muito!

Joaninha

Carmo disse...

Joaninha, o pequeno Zé não deve ser nada fácil de pegar ao colo...imagino-o sempre a mexer-se a aconchegar-se.